QI? Inteligência e sociedade
Cláudia A. Bisol e Carla B. Valentini
No início do século XX, Alfred Binet (1857-1911) era diretor do laboratório de psicologia na Sorbonne, em Paris. A primeira escala de inteligência foi desenvolvida por ele, no ano de 1905. O objetivo era identificar as crianças que não conseguiam ter sucesso em uma sala de aula comum. O foco da escala de Binet era a resolução de problemas da vida cotidiana que envolvessem raciocínio e as tarefas seguiam uma ordem ascendente de dificuldade. Assim se originou a noção de quociente de inteligência (QI). O conteúdo do primeiro do teste, assim como dos testes subsequentes que foram aprimorando a medida, era muito relacionado à escolarização.
O teste de QI teve grande influência nos países industrializados ao longo do século XX. Mas será que esta noção de inteligência, em sua base associada a conteúdo escolares, é a única que existe?
Esta forma de analisar o desempenho das pessoas foi criada em um momento histórico específico, em um contexto escolar, em uma determinada organização social. Se olharmos para o mundo e para a história da civilização de um modo mais amplo, veremos que há outros modos de conceber a vida de um indivíduo e a vida em sociedade. Saber ler e escrever, por exemplo, é essencial no mundo contemporâneo, em uma sociedade onde toda a vida cotidiana está organizada em torno de tecnologias que exigem a leitura e a escrita. Saber caçar, pescar, encontrar comida em uma densa floresta, compartilhar, pensar em termos de grupo e comunidade mais do que em termos de individualidade, conviver intensamente com as necessidades e características uns dos outros foi e continua sendo habilidades e capacidades indispensáveis para pessoas que vivem em sociedades não industrializadas.
Portanto, o conceito de inteligência que prevalece atualmente em nossas economias industrializadas tem relação com as forças sociais, políticas e econômicas dessa forma de organização social. Pessoas em diferentes culturas podem desenvolver e valorizar diferentes habilidades, dependendo das necessidades e características da sociedade na qual vivem.
Seguindo esta linha de raciocínio, podemos associar inteligência com a condição que a pessoa tem de circular de modo efetivo em seu próprio contexto sócio-cultural. Assim sendo, deveríamos pensar a vida de uma pessoa de uma forma que vai além de conceituações restritas, objetificantes e por vezes reducionistas de inteligência ou de deficiência intelectual.
Classificar as pessoas a partir de conceitos estáticos, que não consideram aspectos relacionais de modo mais amplo, pode levar ao preconceito, à discriminação e à impossibilidade de construir formas singulares e criativas de viver.
De modo geral, as pessoas atualmente traçam um caminho que levaria para felicidade relacionado a grandes conquistas pessoais e profissionais que exigem domínio das habilidades valorizadas em nossa sociedade: cursos, diplomas, línguas estrangeiras, domínio de tecnologia, entre tantas outras questões que proporcionam alto desempenho e competitividade no mercado. Para a grande maioria, o conceito de felicidade está fortemente ligado ao conceito de sucesso, e este, por sua vez, acaba sendo representado por um conjunto de valores cotidianamente realçados: um tipo muito restrito de beleza, associada ao que os meios de comunicação vendem (top models e artistas) e um tipo bem específico de riqueza (materializada em roupas, carros, casas espetaculares, viagens, etc.). Parece haver muita dificuldade de enxergar e valorizar outras formas de viver.
Que tipo de beleza e riqueza você vê? Você encontra beleza e riqueza na vida das pessoas preocupadas em estar bem e construir relações verdadeiras com os outros? Você vê beleza e riqueza na vida de pessoas alegres, que apreciam momentos simples, que valorizam pequenos gestos e que se dedicam às situações da melhor maneira que podem? Você vê beleza e riqueza em um abraço apertado e em um sorriso franco?
Analise com cuidado as fotografias e depoimentos de pessoas com deficiência intelectual que destacamos acima. Suas reações diante dessas fotografias e depoimentos dependem de suas atitudes diante da vida e dos seus conceitos do que seja felicidade e sucesso. Permita-se questionar profundamente, até porque é difícil quebrar os paradigmas que são constantemente transmitidos pelos filmes, propagandas e mídias sociais. Permita-se questionar porque este é o caminho para que possamos diminuir o preconceito em relação às pessoas que não se adequam às normas sociais em termos de aparência e comportamentos, que não obtêm sucesso escolar ou que não são competitivas no mercado de trabalho.
Como podemos desenvolver uma visão mais íntegra e integradora de vida em sociedade, que valorize também as pessoas com deficiência intelectual?
Bibliografia
Parmenter, T. R.. Keynote V: The place of a person with an intellectual disability in modern society. Challenges at the person and community levels. (s.d). Disponível em http://www.jldd.jp/gtid/acmr_19/pdf/3.pdf. Acesso em 31 de agosto de 2017.
Para citar este texto
Bisol, C. A. & Valentini, C. B. QI? Inteligência e sociedade. Projeto Incluir. UCS/CNPq/FAPERGS, 2017. Disponível em: <https://proincluir.org/deficiencia-intelectual/qi/03-10-2024