Contranarciso

Paulo Leminski

em mim

eu vejo o Outro

e Outro

e Outro

enfim dezenas

trens passando

vagões cheios de gente

centenas


o Outro

que há em mim

é você

você

e você


assim como

eu estou em você

eu estou nele

em nós

e só quando

estamos em nós

estamos em paz

mesmo que estejamos a sós

As relações

Cláudia A. Bisol e Carla Beatris Valentini

Caetano Veloso canta que ao encarar o outro frente a frente, não viu o próprio rosto. Chamou então de mau gosto o que viu, pois narciso acha feio o que não é espelho (Sampa, música lançada nos anos 70). Narciso… ele é aquele da mitologia grega que se apaixona pelo próprio reflexo em um lago. Quer somente a si mesmo.

Ora, não há lugar para nenhum outro que seja legitimamente um outro (tomando a idéia de Maturana) nesta lógica! Há lugar apenas para um reencontro consigo mesmo. Uma outra forma de dizer, talvez, da negação da alteridade. Não há reconhecimento de um outro que seja diferente de si, não há relação possível.
Neste sentido, se há relação há conflito, pois há diferenças.

A sala de aula, assim com qualquer outra situação social que reúne pessoas em um mesmo espaço para um trabalho que necessita se instaurar num coletivo, é um lugar privilegiado para o conflito.

Na armadilha do narciso (tome o exemplo da música de Caetano ou do mito grego), espero encontrar nos olhos dos outros (meus alunos, meus colegas) um certo brilho ou uma promessa que nada mais é do que um reflexo do meu próprio ser: nem me dou conta de que as pessoas que me agradam são as parecidas comigo ou com algo que julgo pertencer a mim: pode ser um comportamento, um traço, um gesto, um jeito. Mas sou eu… Ouve-se às vezes alguns professores enunciarem: “aquela aluna me faz lembrar quando eu tinha a idade dela, eu era bem assim!”. Nessa perspectiva, não é com o outro, portanto, que me relaciono, mas com a minha imagem que encontro ou não refletida.

Para sair dessa armadilha devo encarar o conflito, a dificuldade que é estabelecer uma relação em que os participantes são o que são, com as suas diferenças em relação a mim.

Esta noção relativa ao espaço que existe ou não para o outro enquanto legitimamente outro, ou seja, para o outro não anulado nem expulso, nem maquiado para parecer igual, é importante ao pensarmos nas pessoas que pertencem aos grupos minoritários. Essas pessoas são as que mais facilmente acabam sendo colocadas neste lugar de quem é anulado, expulso ou “disfarçado” através de diferentes formas de normalização. Porque as diferenças aparecem. Porque o véu que as disfarça é mais transparente. Porque é comum a dificuldade de olhar para este outro.

Posições ambivalentes denunciam o desconforto: um discurso manifesto favorável à inclusão, porém seguido da ideia de que a inclusão deve ocorrer “em outro lugar”. Ou seja, que este aluno com necessidades educativas especiais esteja integrado à sociedade e estudando, porém “em outro curso”, “em um curso mais acessível que este”. Romper a barreira do preconceito é reconhecer o outro e seu desejo. Sem este reconhecimento da legitimidade do desejo do outro não se dará chance para que ele se experimente em seus limites e em suas potencialidades para que assim possa se autorizar e se assumir em sua vida.

Em uma sala de aula caberá ao professor, principalmente, se responsabilizar por sustentar esse lugar, lembrando que todos os seus alunos querem ser vistos e valorizados, mas ao mesmo tempo precisam ter seus espaços respeitados.

Difícil linha esta que separa a atenção adequada que um professor dá a um aluno de seu excesso (pela via da pena, do paternalismo) ou de sua falta (pela via da desvalorização, da não-aposta na capacidade de alguém). Um aluno surdo, por exemplo, já chama muita atenção em uma sala de aula regular pelo uso da língua de sinais e pela mediação da comunicação através de um intérprete. Isso tende a constranger o aluno, pois ser observado pelos demais causa desconforto. Ao mesmo tempo em que o professor precisa dar uma atenção a este aluno, cuidando para alguns detalhes que garantam a acessibilidade e promovam sua aprendizagem, também caberá ao professor ajudar este aluno a se inserir no contexto de sua sala de aula, tornando-o coparticipe do processo coletivo que fundamenta o ensino e a aprendizagem.

Não há receita, não há consenso, há conflito, há movimento, relações possíveis com a dor e com o amor que sempre estarão juntos.

Um convite para olhar o outro, quem sabe junto com Leminsky em sua lógica Contranarciso, num salto ainda maior, mais ousado, mais difícil: em mim ver o outro, dezenas de outros….

Bibliografia
Maturana, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
Maturana, H. & Rezepka, S. N. de. Formação humana e capacitação. Petrópolis: Vozes, 2000.
Lemisnky, P. Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

Para citar este texto
Bisol, C. A. & Valentini, C. B. As Relações. Projeto Incluir – UCS/FAPERGS, 2011.  Disponível em: <https://proincluir.org/ensino/relacoes/23-4-2024