Tente escrever como foram as suas últimas férias
de verão em inglês... ou quem sabe, italiano?
E em alemão? Que tal chinês?

Os tempos verbais estariam corretos?
A estrutura frasal? E as preposições?
Seria fácil? Você escreveria com fluidez,
tanto quanto escreveria o português?

Escrever ou ler um texto é, para a pessoa surda,
ler e escrever em uma segunda língua...

Surdez: o desafio da leitura e da escrita

Carla B. Valentini e Cláudia A. Bisol

A língua de sinais é a língua natural para a pessoa surda, ou seja, a língua que abriga seus pensamentos e sentimentos.

A língua de sinais funciona como suporte do pensamento, como meio de comunicação e é através dela que o surdo pode pensar o mundo e aprender outras línguas.

No entanto, não é nessa língua que a pessoa surda escreve. É algo como pensarmos em chinês, mas precisarmos ler e escrever em português. Além disso, a língua de sinais é visual e espacial e a língua portuguesa é auditiva e oral, o que determina que os canais de recepção e de emissão são diferentes.

Essa diferença tem uma consequência: o aprendizado da leitura e da escrita pelos surdos não segue os mesmos caminhos e processos que para uma pessoa ouvinte. Isto se constitui um dos maiores desafios para a sua educação.

Para o surdo a leitura do mundo se faz pela sua língua natural (língua de sinais) que lhe possibilita construir significados e formular uma noção de mundo, não de forma passiva, mas de forma interativa com o mundo, através da qual possa dar vida aos significados.

No desenvolvimento e apropriação da língua escrita e do letramento é necessário o dinâmico movimento do mundo para o texto e do texto para a continuidade da leitura do mundo. Nesse processo, há vários momentos em que a pessoa surda necessita fazer uma análise implícita e explícita das diferenças e semelhanças entre a língua de sinais e o português escrito. Assim, ocorre a tradução dos conhecimentos adquiridos na língua de sinais, dos conceitos, dos pensamentos e das ideias para o português.

Nesse complexo jogo entre a língua de sinais e a língua escrita o que o professor precisa saber para ressignificar o modo de olhar para o texto escrito pelo seu aluno surdo? Estudos indicam estágios de aprendizagem da escrita, isto é, no processo de aquisição do português escrito, as pessoas surdas constroem um sistema que não mais representa a primeira língua, ou seja, a língua de sinais, mas também ainda não representa a língua alvo, ou seja, o português escrito. Esses estágios são chamados de ‘interlíngua’.

Esses estágios da interlíngua apresentam características de um sistema linguístico com regras próprias e vai em direção ao português escrito. A interlíngua ainda não é o português escrito convencional, mas apresenta regras e uma composição que não é mais da língua de sinais. Por isso encontramos muitas vezes os textos das pessoas surdas com uma estrutura de difícil compreensão, pois ainda não estão usando a estrutura ou regras do português escrito e lembram um pouco a língua de sinais. Encontramos três estágios de interlínguas (Quadros e Schmiedt, 2006):

  • Estágio 1: Escrita mais próxima à língua de sinais, apresenta falta ou inadequação de artigos, preposições, conjunções, uso de verbos no infinitivo, raro emprego de verbos de ligação (ser, estar, ficar). É comum em fase inicial de aquisição da escrita.
  • Estágio 2: Apresenta uma intensa mescla das duas línguas. A estrutura da frase possui ora características da língua de sinais, ora características gramaticais da frase do português. As frases e palavras aparecem justapostas, não resultam em efeito de sentido comunicativo. Há o emprego de verbos no infinitivo e também flexionados, às vezes, emprego de verbos de ligação com correção. Aparece o emprego de artigos, algumas vezes concordando com os nomes que acompanham.
  • Estágio 3: Mais próximo do português escrito convencional, com emprego maior e mais adequado de artigo, preposição, conjunção, flexão dos nomes, flexão verbal e emprego de verbos de ligação ser, estar, ficar.

Considerando esses aspectos é possível compreender a pessoa surda como um estrangeiro no seu próprio país, que não reconhece a grafia do português como a representação escrita da sua língua natural.

Albert Samuel Anker (1831-1910)

Dentre as diferentes habilidades que dão suporte à aprendizagem e que devem ser aprimoradas ao longo da formação do estudante estão a leitura e a escrita. Essas são fundamentais para compreensão, expressão, construção do conhecimento e para o desenvolvimento das competências e habilidades que darão sustentação à sua futura vida profissional. Se os desafios relacionados à leitura e escrita estão presentes para todos os estudantes, com relação aos surdos a situação é mais complexa e desafiadora.

Bibliografia
Quadros, R. M., Schmiedt, M. L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos – Brasília : MEC, SEESP, 2006.
Valentini, C.B. Língua Brasileira de Sinais e Educação de Surdos. Caxias do Sul: Educs, 2009.

Para citar este texto
Valentini, C. B. & Bisol, C. A. Surdez: O desafio da leitura e da escrita. Projeto Incluir – UCS/FAPERGS, 2011.  Disponível em: <https://proincluir.org/surdez/escrita/27-7-2024