Qual o limite do outro?
Cláudia A. Bisol e Carla B. Valentini
O olhar é rapidamente capturado por aquilo que marca a diferença em pessoas como Helen Keller, Stephen Hawking, Aleijadinho, Pascal Duquenne, Evgen Bavcar, Emmanuelle Laborit e em atletas paralímpicos: surdo-cegueira, doenças degenerativas, Síndrome de Down, deficiência visual, surdez, paralisias, membros amputados…
O olhar registra rapidamente a diferença em relação ao que se convencionou chamar de normal. As palavras, por sua vez, embaralham-se: como nomear?
Excepcionais, portadores de deficiência, portadores de necessidades especiais, pessoas com necessidades especiais, deficientes, pessoas com deficiência – somam-se nomenclaturas ao longo dos anos. A confusão generalizada e a dificuldade de nomeação vai das ruas às universidades e aos documentos oficiais. Qual o termo politicamente correto? A língua desliza e se atrapalha, assim como o olhar.
A maioria das pessoas sente dificuldades ao falar sobre deficiência ou sobre ser deficiente. Uma das principais razões para o desconforto é que a deficiência é cercada de preconceitos e entendida como algo muito negativo. A ideia de que é uma tragédia ainda ronda a sociedade e marca a vida das pessoas com deficiência e de suas famílias.
Você compartilha esta ideia? O que você pensou e sentiu ao ver as conquistas destas pessoas cuja vida retratamos brevemente? A sua interpretação dessas histórias de vida depende do seu conjunto de crenças e valores, de suas experiências, do modo como você habita seu próprio corpo e do modo como você pensa as diferenças entre as pessoas.
São várias as questões possíveis: qual a sua relação com o que a sociedade considera normal? Como você habita o seu corpo, ou seja, qual a relação que você tem com os limites e com os potenciais que seu corpo apresenta? Qual a sua experiência em relação ao que pode e ao que não pode fazer, ao que consegue ou não?
O olhar tem que ser duplo: para si mesmo e para o outro. Isso permitirá ir além de interpretações superficiais que se alternam, por exemplo, entre considerar a vida das pessoas com deficiência como sendo trágicas ou admiráveis pela superação que representam. Sim, considerar que a deficiência deve ser motivo de pena ou que deve vir acompanhada de heroísmo e de talentos extraordinários são exemplos de interpretações superficiais e que acabam reforçando o preconceito.
Este preconceito tem nome. Chama-se capacitismo: “O termo capacitismo se refere à naturalização e hierarquização das capacidades corporais humanas. Quando uma pessoa não enxerga com olhos, ela é lida como deficiente e passa a ser percebida culturalmente como “incapaz” e, portanto, “especial”. Por isso, o capacitismo impede a consideração de que é possível andar sem ter pernas, ouvir com os olhos, enxergar com os ouvidos e pensar com cada centímetro de pele que possuímos. O capacitismo também é essa forma hierarquizada e naturalizada de conceber qualquer corpo humano como algo que deve funcionar, agir e se comportar de acordo com a biologia” (Mello, 2019, p. 136).
Nosso convite é para que você comece a questionar profundamente o que entende por deficiência e por eficiência. Um olhar que vê o outro sob o prisma da pena, da tragédia, do que falta, ou que exige uma superação extraordinária para que a pessoa passe a ter valor deixa de ver o que se propõe como outra forma de estar no mundo.
O que é a deficiência, quem é deficiente? A deficiência é uma falha mensurável no corpo ou na mente de uma pessoa, ou é um modo de estar no mundo?
Olhe para essas histórias de vida e olhe para si mesmo. Como diz Lennard Davis (1995), o corpo não é simplesmente algo físico. O corpo é um conjunto de atitudes. No entanto, nosso imaginário coletivo pode estar ancorado nas capacidades e nas incapacidades, regido por aquilo que uma pessoa consegue ou não fazer. Tendemos a fazer uma oposição reducionista entre normalidade e anormalidade.
Vamos insistir nesta questão, pois ela atravessa o cotidiano das pessoas nas escolas, nas empresas e nas relações familiares: à primeira vista, pode-se pensar que a maior vitória das pessoas com deficiência é superar os chamados “limites” colocados pela surdez, pela cegueira, pelas diferenças intelectuais, pelas dificuldades de locomoção, etc. Esse é um modo normalizador de se olhar a questão: colocadas as próteses, estabelecidas as compensações, ótimo, a pessoa pode “funcionar’” o mais próximo da normalidade possível – do ideal de ser humano, com o conjunto de significados associados a esse ideal em cada cultura e momento histórico. Este olhar é normalizador porque pressupõe que há uma maneira adequada de se habitar nosso mundo, outras formas são desvios ou doenças. Esse olhar está contaminado pela oposição binária entre normalidade e anormalidade.
Pois bem, há outro modo de se pensar que desloca o olhar do indivíduo para sociedade, e que consiste em considerar as barreiras que se produzem e reproduzem cotidianamente. Que um deficiente visual possa tirar fotografia? “Está no curso errado, não é profissão para ele”, dirão os professores. Que uma surda seja atriz? “Como, se não pode falar? Haverá uma profissão mais adequada”, diria um orientador vocacional.
Professores, médicos, psicólogos, e tantos outros, sugerem caminhos delineados a partir de seu modo “normalizador” de pensar as possibilidades, impossibilidades e as adequações à sociedade, criando barreiras que cerceiam as vidas: “Que tal uma linha de montagem para os surdos, já que são ágeis com as mãos? Deficientes visuais, bem, é difícil, muitos aprendem a tocar instrumentos… Cadeirantes? É mais fácil, basta ter uma rampa. Síndrome de Down, já sei, empacotador, o supermercado poderá ter uma vaga…”
Vamos inverter esta lógica. Vamos nos propor a conviver, a conversar entre nós, a dialogar e a descobrir as possibilidades que se abrem para além das histórias prontas, tradicionais, marcadas pelo capacitismo e pela dificuldade que temos, enquanto sociedade, de valorizar cada experiência de vida em sua potencialidade.
A proposta pode ser esta: deixar que as pessoas possam falar por si, para então aprender com elas sobre suas vidas. Que nos espaços coletivos possamos construir as possibilidades de conviver, aprender, trabalhar e usufruir da vida, juntos. Que o limite do outro não seja mais colocado de “fora para dentro”, eis talvez o maior limite a ser superado.
Bibliografia
Davis, J. L. Enforcing normalcy: disability, deafness and the body. London: Verso, 1995.
Mello, A. G.; Prata, N.; Pessoa, C. Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag# ÉCapacitismoQuando no Facebook. Desigualdades, gêneros e comunicação, p. 125-142, 2019.
Para citar este texto
Bisol, C. A. & Valentini, C. B. Qual o limite do outro? Projeto Incluir – UCS/CNPq/FAPERGS, 2011. Revisado e atualizado em 2023. Disponível em: <https://proincluir.org/limites/12-12-2024