Qual o limite do outro?
Cláudia A. Bisol e Carla B. Valentini
O olhar é rapidamente capturado por aquilo que marca a diferença em pessoas como Helen Keller, Stephen Hawking, Aleijadinho, Pascal Duquenne, Evgen Bavcar, Emmanuelle Laborit e atletas paraolímpicos: surdo-cegueira, doenças degenerativas, Síndrome de Down, deficiência visual, surdez, paralisias e membros amputados.
Porém se o olhar registra rapidamente a diferença em relação àquilo que se convencionou chamar de normal, as palavras embaralham-se: como nomear?
Excepcionais, portadores de deficiência, deficientes, portadores de necessidades especiais, pessoas com necessidades especiais – somam-se nomenclaturas ao longo dos anos. A confusão generalizada e a dificuldade de nomeação vão das ruas às universidades e destas aos documentos oficiais. Qual o termo politicamente correto? A língua desliza e se atrapalha, assim como o olhar.
Não sei o que você pensou e sentiu ao ver as conquistas de Helen Keller, Stephen Hawking, Aleijadinho, Pascal Duquenne, Evgen Bavcar, Emmanuelle Laborit e dos atletas paraolímpicos. Não sei, porque não sei de que lugar você olhou (o lugar a partir do qual você olhou afeta a sua interpretação dessas histórias de vida). Por exemplo, pode-se olhar como alguém jovem e saudável cujo corpo ainda não apresentou nenhum grande problema ou limitação; ou como alguém jovem cuja saúde já se viu afetada por uma doença ou condição e que conheceu de perto a luta para viver e construir alternativas possíveis; ou alguém cuja saúde nunca incomodou profundamente, mas que sente as marcas dos anos deixando o corpo um tanto mais pesado e, portanto olha para os anos que tem pela frente sentindo a sombra da doença ou das limitações acercando-se lentamente; ou alguém que viveu uma juventude sem preocupar-se com o corpo, mas que agora enfrenta alguns dissabores, condições ou doenças que costumam acompanhar o envelhecimento; ou ainda alguém que se envergonha de si mesmo porque acha que tem algum defeito como uma gordura a mais nos quadris ou um nariz que não convém… Não sei, são tantos os lugares possíveis.
São várias as questões possíveis: que tipo de corpo você habita? Qual a relação do seu corpo com o que a sociedade considera normal? Como você habita o seu corpo, ou seja, qual a relação que você tem com as limitações ou com os potenciais que seu corpo apresenta? Qual a sua experiência em relação ao que pode e ao que não pode fazer, ao que consegue ou não?
O olhar tem que ser então duplo e simultâneo: para si mesmo e para Helen Keller, Stephen Hawking, Aleijadinho, Pascal Duquenne, Evgen Bavcar, Emmanuelle Laborit e para os atletas paraolímpicos. Isso permitirá a você ir além de uma interpretação superficial do tipo “nossa, que pessoas admiráveis”. Essa interpretação superficial tende a supor que a deficiência deve vir acompanhada do heroísmo e do talento surpreendente de “super deficientes”.
Eles devem ser tomados como exemplo – para deficientes e eficientes, exemplos de superação: “Vamos parar de nos queixar, afinal nossos problemas são tão pequenos”, diz uma voz em sua cabeça. E termina por aí.
Mas não deve terminar por aí. Neste olhar de mão dupla para si mesmo e para essas histórias de vida, cabe questionar profundamente o que se entende por deficiência e por eficiência. Um olhar que vê o outro sob o prisma do que falta e no máximo propõe uma reabilitação, deixa de ver o que está aí como outra forma de estar no mundo.
O que é a deficiência, quem é deficiente? A deficiência é uma falha mensurável no corpo ou na mente de uma pessoa, ou é uma maneira de estar no mundo diferente na norma?
Olhe para essas histórias de vida e olhe para si mesmo. Como diz Lennard Davis (teórico norte-americano), o corpo não é simplesmente algo físico. O corpo é um conjunto de atitudes. No entanto, nosso imaginário coletivo pode estar ancorado nas capacidades e nas incapacidades, regido por aquilo que uma pessoa consegue ou não fazer. Tendemos a fazer uma oposição reducionista entre normalidade e anormalidade.
Outro questionamento possível pode ser construído em torno da ideia de superação. À primeira vista, pode-se pensar que a maior vitória é superar a limitação colocada pela surdez, pela cegueira, pelas dificuldades de locomoção, etc. Esse é um modo “normalizador” de se olhar a questão: colocadas as próteses, estabelecidas as compensações, ótimo, a pessoa pode “funcionar’” o mais próximo da normalidade possível – do ideal de ser humano (com o conjunto de significados associados a esse ideal em cada cultura e momento histórico). Este olhar é normalizador porque pressupõe que há uma maneira adequada, esperada, desejada de se habitar nosso mundo, outras formas são desvios. Esse olhar está contaminado pela oposição binária entre normalidade e anormalidade.

Joias desenhadas por Salvador Dalí transformam o corpo em arte surreal.
Pois bem, há outro modo de se pensar. Talvez a grande superação de cada uma dessas pessoas tenha sido muito mais do que “compensar” o que “faltaria” em si mesma. A superação pode ter sido a de vencer barreiras colocadas pela sociedade. Que um deficiente visual possa tirar fotografia? “Está no curso errado, não é profissão para ele”, dirão os professores. Que uma surda seja atriz? “Como, se não pode falar ou dançar? Haverá uma profissão mais adequada”, diria um orientador vocacional.
Uma vez reconhecido como “comprometido”, esse outro passa a ser objeto de olhares penalizados, confusos, cheios de boa vontade (na maioria das vezes), discriminadores (na grande maioria das vezes!). Junto com esse olhar surgem destinos delineados previamente, de fora para dentro (do “normal” para o “deficiente”): “Que tal uma linha de montagem para os surdos, já que são ágeis com as mãos? Só vantagens, pois não se incomodariam com os ruídos. Deficientes visuais.. bem, é difícil, muitos aprendem a tocar instrumentos… Cadeirantes? É mais fácil, basta ter uma rampa… Síndrome de Down, já sei, empacotador, o supermercado poderá ter uma vaga…”
Ora, um “normal” não sabe como é experimentar o mundo a partir de outros referenciais que não os seus. Colocar-se na pele do outro é uma expressão de linguagem. Ninguém habita além de sua própria casca. O outro é sempre um estranho para mim. Então não é a mim que cabe dizer o que uma pessoa será ou não capaz de realizar! O meu saber sobre o outro é tão ínfimo…
A proposta pode ser esta: deixar falar este outro para então aprender com ele sobre sua vida. Que o limite seja colocado de fora para dentro, eis talvez o maior limite a ser superado.
Bibliografia
Davis, J. L. Enforcing normalcy: disability, deafness and the body. London: Verso, 1995.
Para citar este texto
Bisol, C. A. & Valentini, C. B. Qual o limite do outro? Projeto Incluir – UCS/FAPERGS, 2011. Disponível em: <https://proincluir.org/limites/08-6-2023